Quando uma substância é ionizável, como o ácido acetilsalicílico (AAS) ou a p-toluidina (PTA), a solubilidade em água é influenciada pelo pH . Este ponto é altamente relevante para entender a absorção de fármacos no trato gastrointestinal (TGI). Sabendo-se que o pH do conteúdo aquoso do estômago está entre 1,2 a 3,0 e que o pH do intestino é cerca de 8,0, responda as seguintes questões, utilizando estruturas químicas na argumentação:
a. No pH gástrico, qual dos compostos estará na forma ionizada, AAS ou PTA?
b. E no pH do intestino, qual dos compostos estará na forma ionizada?
c. Discuta a importância do pH e da solubilidade para a absorção de fármacos no TGI. Cite outros exemplos.

Passo 1

O que o enunciado pede:
  • (a) No pH gástrico ( \mathrm{pH\\\ 1,2\text{ a }3,0}), qual composto estará na forma ionizada: ácido acetilsalicílico (AAS) ou p-toluidina (PTA)?
  • (b) No pH intestinal ( \mathrm{pH\\\ 8,0}), qual composto estará na forma ionizada?
  • (c) Discutir a importância do pH e da solubilidade para a absorção de fármacos no trato gastrointestinal (TGI) e citar outros exemplos.
Informações relevantes dadas e constantes que vou usar:
  • pH do estômago: \mathrm{pH\\\ 1,2\text{ a }3,0}.
  • pH do intestino delgado: \mathrm{pH\\\ 8,0}.
  • Estruturas (representação condensada que usarei para argumentar):
    • AAS (ácido acetilsalicílico): \mathrm{2\text{-}AcO\text{-}C_6H_4\text{-}COOH} (contém um grupo \mathrm{-COOH} ácido).
    • PTA (p-toluidina): \mathrm{p\text{-}CH_3\text{-}C_6H_4\text{-}NH_2} (contém um grupo amino \mathrm{-NH_2}, base).
  • Valores de dissociação (valores típicos de literatura, aproximados):
    • \mathrm{p}K_a(\text{AAS}) \approx 3,5 (refere-se ao grupo \mathrm{-COOH}).
    • \mathrm{p}K_a(\text{p\text{-}toluidina}^{+}) \approx 5,0 (este é o \mathrm{p}K_a do íon conjugado \mathrm{BH^+}; para bases usamos o \mathrm{p}K_a da base protonada).
      Observações:
  • Vou usar a equação de Henderson–Hasselbalch para quantificar grau de ionização e justificar as respostas. Não pedi nenhuma outra informação, então prossigo com esses valores típicos.

Passo 2

Conceitos básicos (explicação didática, passo a passo):
  • O que significa “ionizado” aqui?
    • Para um ácido genérico \mathrm{HA}, a forma ionizada é \mathrm{A^-} (perdeu um próton). A forma não ionizada é \mathrm{HA}.
    • Para uma base genérica \mathrm{B}, a forma ionizada é a sua base protonada \mathrm{BH^+}. A forma não ionizada é \mathrm{B}.
  • Por que isso importa para solubilidade e absorção?
    • Formas ionizadas (carga elétrica) são geralmente muito mais solúveis em água (hidrofílicas) e menos solúveis em lipídios; por isso atravessam mal membranas lipídicas por difusão passiva.
    • Formas não ionizadas (neutras) tendem a ser mais lipofílicas e atravessam melhor membranas por difusão passiva, mas podem ter menor solubilidade aquosa. Absorção por via oral muitas vezes depende dessas duas propriedades em equilíbrio.
  • Fórmulas que vamos usar (Henderson–Hasselbalch):
    • Para um ácido \mathrm{HA}: \mathrm{pH = pK_a + \log\frac{[A^-]}{[HA]}}Assim \displaystyle \frac{[A^-]}{[HA]} = 10^{\mathrm{pH-pK_a}}.
      Percentual de ácido na forma ionizada ( \mathrm{A^-}): \%\\ \text{ionizado} = \frac{[A^-]}{[A^-]+[HA]}\times100\% = \frac{10^{\mathrm{pH-pK_a}}}{1+10^{\mathrm{pH-pK_a}}}\times100\%.
    • Para uma base \mathrm{B} (usamos \mathrm{p}K_a de \mathrm{BH^+}): \mathrm{pH = pK_a + \log\frac{[B]}{[BH^+]}}Assim \displaystyle \frac{[B]}{[BH^+]} = 10^{\mathrm{pH-pK_a}}.
      Percentual de base na forma protonada (ionizada, \mathrm{BH^+}): \%\\ \text{protonada (ionizada)} = \frac{[BH^+]}{[B]+[BH^+]}\times100\% = \frac{1}{1+10^{\mathrm{pH-pK_a}}}\times100\%.
  • Plano: aplicar essas fórmulas a AAS (ácido) e PTA (base) nos pH indicados.

Passo 3

Cálculos para AAS (ácido, \mathrm{p}K_a\approx3,5):
  • No estômago, tomo duas situações extremas:
    1. \mathrm{pH}=1,2: \mathrm{pH-pK_a}=1,2-3,5=-2,3 \quad\Rightarrow\quad 10^{\mathrm{pH-pK_a}}=10^{-2,3}\approx 0,005
\%\\ \text{ionizado}=\frac{0,005}{1+0,005}\times100\%\approx 0,5\%
 Conclusão: em \(\mathrm{pH}=1,2\) o AAS está majoritariamente na forma não ionizada (\(\mathrm{HA}\)) — apenas cerca de \(0,5\%\) ionizado.
  1. \mathrm{pH}=3,0: \mathrm{pH-pK_a}=3,0-3,5=-0,5 \quad\Rightarrow\quad 10^{-0,5}\approx 0,316
\%\\ \text{ionizado}=\frac{0,316}{1+0,316}\times100\%\approx 24\%
 Conclusão: em \(\mathrm{pH}=3,0\) cerca de \(24\%\) do AAS está ionizado; ainda predomina a forma não ionizada, mas já há fração ionizada significativa.
  • No intestino, \mathrm{pH}=8,0: \mathrm{pH-pK_a}=8,0-3,5=4,5 \quad\Rightarrow\quad 10^{4,5}\approx 3{,}2\times10^{4}
\%\\ \text{ionizado}=\frac{3{,}2\times10^{4}}{1+3{,}2\times10^{4}}\times100\%\approx 99{,}997\%\\ (\text{praticamente 100\%})
Conclusão: em \mathrm{pH}=8,0 o AAS está praticamente todo na forma ionizada \mathrm{A^-}.

Passo 4

Cálculos para p-toluidina (PTA), base com \mathrm{p}K_a(\mathrm{BH^+})\approx5,0:
  • No estômago:
    1. \mathrm{pH}=1,2: \mathrm{pH-pK_a}=1,2-5,0=-3,8 \quad\Rightarrow\quad 10^{-3,8}\approx 1,58\times10^{-4}Razão \displaystyle \frac{[B]}{[BH^+]}=10^{\mathrm{pH-pK_a}}\approx1,58\times10^{-4}. A fração protonada (ionizada) é: \%\\ \text{protonada}=\frac{1}{1+1{,}58\times10^{-4}}\times100\%\approx 99{,}984\%Conclusão: em \mathrm{pH}=1,2 a PTA está praticamente toda protonada (ionizada, \mathrm{BH^+}).
    2. \mathrm{pH}=3,0: \mathrm{pH-pK_a}=3,0-5,0=-2,0 \quad\Rightarrow\quad 10^{-2,0}=0,01
\%\\ \text{protonada}=\frac{1}{1+0,01}\times100\%\approx 99{,}0\%
 Conclusão: em \(\mathrm{pH}=3,0\) ainda cerca de \(99\%\) está protonada (ionizada).
  • No intestino, \mathrm{pH}=8,0: \mathrm{pH-pK_a}=8,0-5,0=3,0 \quad\Rightarrow\quad 10^{3,0}=1000
\%\\ \text{protonada}=\frac{1}{1+1000}\times100\%\approx 0,1\%
Conclusão: em \mathrm{pH}=8,0 a PTA está praticamente toda na forma não protonada (neutra, \mathrm{B}); ou seja, não ionizada.

Passo 5

Interpretação das contas e ligação às estruturas:
  • AAS ( \mathrm{2\text{-}AcO\text{-}C_6H_4\text{-}COOH}) tem um grupo \mathrm{-COOH} com \mathrm{p}K_a\approx3,5. Em pH menores que o \mathrm{p}K_a ele está predominante como \mathrm{HA} (neutro); em pH muito maiores que \mathrm{p}K_a ele fica \mathrm{A^-} (carregado). As contas mostram que:
    • No estômago ( \mathrm{pH\\\ 1,2\text{–}3,0}) AAS está majoritariamente não ionizado (neutro) — especialmente em \mathrm{pH}=1,2.
    • No intestino ( \mathrm{pH}=8,0) AAS está praticamente totalmente ionizado ( \mathrm{A^-}).
  • PTA ( \mathrm{p\text{-}CH_3\text{-}C_6H_4\text{-}NH_2}) é uma amina aromática (base): em pH baixo ela é protonada ( \mathrm{BH^+}, carregada); em pH alto ela fica neutra ( \mathrm{B}). As contas mostram que:
    • No estômago ( \mathrm{pH\\\ 1,2\text{–}3,0}) PTA está praticamente toda protonada/ionizada.
    • No intestino ( \mathrm{pH}=8,0) PTA está praticamente toda não ionizada (neutra).

Passo 6

Resumo conceitual (importância prática para absorção no TGI) — pontos-chave e exemplos:
  • Regra prática: “pH determina ionização → ionizado = mais solúvel em água, menos permeável pela membrana; não ionizado = menos solúvel, mais permeável.” Isso é a base da teoria do particionamento pH‑dependente (pH partition).
  • Consequências para absorção:
    • Um ácido fraco (como AAS) tende a ser melhor absorvido onde ele está na forma neutra. Para AAS isso significa que uma fração significativa pode ser absorvida no estômago (onde está menos ionizado), embora o intestino, por sua grande área de superfície, também seja importante para absorção geral. No intestino AAS é muito solúvel (ionizado) mas menos permeável — ainda assim parte pode ser absorvida por outros mecanismos ou após equilíbrio.
    • Uma base fraca (como PTA) tende a ser absorvida preferencialmente onde ela está neutra — para PTA isso ocorre no intestino (pH alto), enquanto no estômago ela fica ionizada e muito solúvel, mas pouco permeável.
  • Exemplos práticos de outros fármacos:
    • Ibuprofeno (ácido fraco, \mathrm{p}K_a\approx4{,}9): mais neutro no estômago (melhor permeação local) e mais ionizado no intestino (maior solubilidade). Apesar disso, a maior área do intestino faz com que muito ibuprofeno seja absorvido lá também.
    • Lidocaína (base fraca, \mathrm{p}K_a\approx7{,}9): em pH fisiológico uma parte está protonada; a fração não protonada consegue penetrar membranas (importante para anestesia local).
    • Morfina (base fraca, \mathrm{p}K_a\approx8{,}0): ampla protonação em pH baixo; absorção e distribuição são afetadas por isso.
  • Implicações farmacêuticas:
    • Formulações (ex.: revestimentos entéricos, sais farmacêuticos) mudam solubilidade e local de liberação para melhorar absorção ou reduzir irritação gástrica (AAS pode irritar estômago; entérico evita liberação ácida no estômago).
    • Conhecer \mathrm{p}K_a e o pH do local permite prever onde um fármaco será absorvido e como modificar a formulação para otimizar biodisponibilidade.

Resposta

(a) \mathrm{p\text{-}toluidina\\ (PTA)} estará na forma ionizada (protonada, \mathrm{BH^+}) no \mathrm{pH\\\ 1,2\text{–}3,0}.
(b) \mathrm{ácido\\ acetilsalicílico\\ (AAS)}áí estará na forma ionizada ( \mathrm{A^-}) no \mathrm{pH\\\ 8,0}.
(c) O \mathrm{pH} determina o grau de ionização ( \mathrm{pH-pK_a} via Henderson–Hasselbalch): formas ionizadas são mais solúveis em água e menos permeáveis à membrana lipídica, enquanto formas não ionizadas são menos solúveis e mais permeáveis; portanto a absorção oral é um balanço entre solubilidade e permeabilidade (ex.: \mathrm{ibuprofeno}, \mathrm{lidocaína}í, \mathrm{morfina}).

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