Um gás natural, consistindo exclusivamente em metano ( \mathrm{CH}_{4} ), é queimado com uma corrente de ar enriquecida com oxigênio, cuja composição é 40 \% de \mathrm{O}_{2} e 60 \% de \mathrm{N}_{2}. A análise de Orsat do produto gasoso, conforme reportada pelo laboratório, é 20,2 \% de \mathrm{CO}_{2}, 4,1 \% de \mathrm{O}_{2} e 75,7 \% de \mathrm{N}_{2}. A análise reportada pode estar correta? Mostre todos os cálculos.

Passo 1

O enunciado dá as seguintes informações e pede para verificar se a análise do gás de combustão está correta:
  • Gás combustível: exclusivamente metano, \mathrm{CH}_{4}.
  • Gás comburente (corrente de ar enriquecida): composto por 40\% de \mathrm{O}_{2} e 60\% de \mathrm{N}_{2} (essas percentagens são em base molar/volumétrica).
  • Análise Orsat (produto seco, conforme é usual): 20{,}2\% de \mathrm{CO}_{2}, 4{,}1\% de \mathrm{O}_{2} e 75{,}7\% de \mathrm{N}_{2}.
  • Pergunta: “A análise reportada pode estar correta?” — ou seja, verificar se existe um balanço estequiométrico compatível entre combustível fornecido, comburente e os percentuais secos reportados.
Informações relevantes listadas:
  • A análise Orsat reportada soma 100\% (está em base seca).
  • Para cada mol de \mathrm{CH}_{4} queimado, a estequiometria para combustão completa exige 2 mols de \mathrm{O}_{2} formando 1 mol de \mathrm{CO}_{2} (mais água que é removida na análise seca).
  • Vamos usar moles (volumes) como base e fazer balanços molares secos. Não vou assumir nada além do enunciado (por ex., que a análise é em base seca).

Passo 2

Escolha da base e definição de variáveis (coisa crucial para fazer os balanços sem erro):
  • Escolho como base 1 mol de \mathrm{CH}_{4} queimado — é um padrão bem simples e que facilita raciocínio por mol.
  • Seja y o número de mols (volumes) da corrente de ar enriquecida que entra para queimar esse 1 mol de \mathrm{CH}_{4}. Nesse comburente temos:
    • \,0{,}4y mols de \mathrm{O}_{2},
    • \,0{,}6y mols de \mathrm{N}_{2}.
  • Primeiro considero a hipótese mais simples: combustão completa (todo carbono vira \mathrm{CO}_{2}, sem \mathrm{CO}). Depois vamos levantar a possibilidade de \mathrm{CO} para ver se consegue explicar a análise.
Lembrando a estequiometria completa para \mathrm{CH}_{4}:
\mathrm{CH}_{4} + 2\:\mathrm{O}_{2} \longrightarrow \mathrm{CO}_{2} + 2\:\mathrm{H}_{2}\mathrm{O}.
Então, para 1 mol de \mathrm{CH}_{4} queimado, produzimos 1 mol de \mathrm{CO}_{2} e consumimos 2 mols de \mathrm{O}_{2}.

Passo 3

Balanço dos gases secos no caso de combustão completa ( c=0, onde c seria mols de \mathrm{CO} caso houvesse):
  • Mols de produtos secos (por base 1 mol \mathrm{CH}_{4}):
    • \mathrm{CO}_{2}: 1 mol (do carbono).
    • \mathrm{O}_{2} em excesso: \,0{,}4y - 2 mol (se positivo; se negativo significa falta de O2).
    • \mathrm{N}_{2}: 0{,}6y mol (inerte, atravessa a reação).
  • Total de moles secos no produto:
\text{Total} = 1 + (0{,}4y - 2) + 0{,}6y = y - 1.
  • A fração molar (percentual em base seca) de \mathrm{CO}_{2} então será:
\frac{1}{y-1}.

Passo 4

Usando o dado de \mathrm{CO}_{2}=20{,}2\% para determinar y (caso c=0):
  • Colocando em forma decimal: \mathrm{CO}_{2}=0{,}202.
  • Logo,
\frac{1}{y-1} = 0{,}202 \quad\Longrightarrow\quad y-1 = \frac{1}{0{,}202} \quad\Longrightarrow\quad y = 1 + \frac{1}{0{,}202}.
  • Calculemos:
y = 1 + \frac{1}{0{,}202} \approx 1 + 4{,}95049505 \approx 5{,}9505.
Então, se os 20{,}2\% de \mathrm{CO}_{2} forem corretos e não houver \mathrm{CO}, o comburente fornecido por mol de \mathrm{CH}_{4} seria y\approx 5{,}9505 mols da mistura 40\%\\ \mathrm{O}_{2}/60\%\\ \mathrm{N}_{2}.

Passo 5

Com esse y calculado, calculo as frações esperadas de \mathrm{O}_{2} e \mathrm{N}_{2} (caso c=0) e comparo com as dadas:
  • Mols de \mathrm{O}_{2} em excesso:
0{,}4y - 2 = 0{,}4 \times 5{,}9505 - 2 \approx 2{,}3802 - 2 = 0{,}3802.
  • Fração molar de \mathrm{O}_{2} no gás seco:
\frac{0{,}3802}{y-1} = \frac{0{,}3802}{4{,}9505} \approx 0{,}0768 = 7{,}68\%.
  • Mols de \mathrm{N}_{2}: 0{,}6y = 0{,}6 \times 5{,}9505 \approx 3{,}5703.
  • Fração molar de \mathrm{N}_{2}:
\frac{3{,}5703}{4{,}9505} \approx 0{,}7215 = 72{,}15\%.
Comparação com análise reportada:
  • \mathrm{O}_{2} esperado 7{,}68\% vs reportado 4{,}1\% → discrepância grande.
  • \mathrm{N}_{2} esperado 72{,}15\% vs reportado 75{,}7\% → também discrepância.
Portanto, sob hipótese de combustão completa (nenhum \mathrm{CO}), os percentuais reportados não são compatíveis.

Passo 6

Verificação alternativa: usar o \mathrm{N}_{2} reportado para determinar y e checar \mathrm{CO}_{2}:
  • A equação para \mathrm{N}_{2} seca é:
\frac{0{,}6y}{y-1} = 0{,}757.
  • Resolvendo:
0{,}6y = 0{,}757(y-1) \quad\Longrightarrow\quad 0{,}6y = 0{,}757y - 0{,}757
\Rightarrow\quad 0{,}157y = 0{,}757 \quad\Longrightarrow\quad y \approx \frac{0{,}757}{0{,}157} \approx 4{,}8229.
  • Com y \approx 4{,}8229, a fração de \mathrm{CO}_{2} prevista (caso c=0) seria:
\frac{1}{y-1} = \frac{1}{3{,}8229} \approx 0{,}2616 = 26{,}16\%,
o que não bate com os 20{,}2\% reportados.
Conclusão dessa verificação: os dados de \mathrm{CO}_{2} e \mathrm{N}_{2} são incompatíveis entre si sob a hipótese de combustão completa.

Passo 7

Agora considero a possibilidade de combustão parcial com formação de \mathrm{CO}. Montamos balanços gerais permitindo c mols de \mathrm{CO} por mol de \mathrm{CH}_{4} (ou seja, c é fração molar de carbono que sai como \mathrm{CO}):
  • Reação geral (por 1 mol \mathrm{CH}_{4}):
\mathrm{CH}_{4} + a\,\mathrm{O}_{2} \longrightarrow (1-c)\,\mathrm{CO}_{2} + c\,\mathrm{CO} + 2\,\mathrm{H}_{2}\mathrm{O}.
  • Balanço de oxigênio dá a = 2 - \dfrac{c}{2} (derivação rápida: contar átomos de O).
  • Mols de \mathrm{O}_{2} disponíveis: 0{,}4y. Portanto \mathrm{O}_{2} em excesso é:
0{,}4y - \left(2 - \frac{c}{2}\right) = 0{,}4y - 2 + \frac{c}{2}.
  • Mols secos no produto (por 1 mol \mathrm{CH}_{4}):
    • \mathrm{CO}_{2}:(1-c),
    • \mathrm{CO}: c,
    • \mathrm{O}_{2} em excesso: 0{,}4y - 2 + \dfrac{c}{2},
    • \mathrm{N}_{2}: 0{,}6y.
  • Total seco:
D = (1-c) + c + \left(0{,}4y - 2 + \frac{c}{2}\right) + 0{,}6y = y - 1 + \frac{c}{2}.
  • Frações molares secas:
\begin{aligned} \text{CO}_{2} &: \frac{1-c}{D},\\\ \text{O}_{2} &: \frac{0{,}4y - 2 + \dfrac{c}{2}}{D},\\\ \text{N}_{2} &: \frac{0{,}6y}{D}. \end{aligned}

Passo 8

Tentativa de ajustar c e y para coincidir com os valores reportados \mathrm{CO}_{2}=0{,}202, \mathrm{O}_{2}=0{,}041, \mathrm{N}_{2}=0{,}757:
  • Primeiro combino \mathrm{CO}_{2} e \mathrm{O}_{2} (duas equações) para achar c e y. Das fórmulas:
\frac{1-c}{D} = 0{,}202,\qquad \frac{0{,}4y -2 + \dfrac{c}{2}}{D} = 0{,}041,
com D = y - 1 + \dfrac{c}{2}.
Fazendo os passos algébricos (substituição e limpeza) obtemos (resumo dos cálculos numéricos):
  • Solução aproximada: c \approx 0{,}119 (ou seja, cerca de 11{,}9\% do carbono saindo como \mathrm{CO}) e y \approx 5{,}297.
  • Com esses valores, a fração prevista de \mathrm{N}_{2} fica:
\frac{0{,}6y}{D} \approx 0{,}7294 = 72{,}94\%,
que difere do valor reportado 75{,}7\%.
  • Em alternativa, combinar \mathrm{CO}_{2} e \mathrm{N}_{2} e resolver por c,y c\approx 0{,}372 e y\approx 3{,}925, mas aí o \mathrm{O}_{2} resultante fica negativo (ou seja, haveria falta de oxigênio — o que contradiz o relatório que mostra \mathrm{O}_{2} residual positivo 4{,}1\%). Isso é fisicamente impossível para um relatório que dá O2 positivo.
Resumo desta etapa: admitindo formação de \mathrm{CO} é possível ajustar dois dos três valores reportados, mas não os três simultaneamente. O sistema de três equações com duas incógnitas (mais a incógnita c) prova ser incompatível com os três percentuais dados — os três percentuais não satisfazem simultaneamente os balanços molares.

Passo 9

Interpretação física e síntese do que os cálculos mostram (em linguagem simples):
  • Se assumirmos que todo o carbono virou \mathrm{CO}_{2} (combustão completa), os 20{,}2\% de \mathrm{CO}_{2} implicam em muito mais \mathrm{O}_{2} residual do que o reportado ( \approx 7{,}7\% esperado vs 4{,}1\% medido) e menos \mathrm{N}_{2} ( \approx 72{,}1\% esperado vs 75{,}7\% medido). Logo não bate.
  • Se permitirmos \mathrm{CO} parcial, dá para ajustar dois dos três números (por exemplo \mathrm{CO}_{2} e \mathrm{O}_{2}), mas então o terceiro ( \mathrm{N}_{2}) fica fora; ou ajustar \mathrm{CO}_{2} e \mathrm{N}_{2} e aí o \mathrm{O}_{2} fica fisicamente impossível (negativo).
  • Portanto não existe combinação de y (quantidade de ar enriquecido) e c (fração de C como \mathrm{CO}) que torne simultaneamente verdadeiros \mathrm{CO}_{2}=20{,}2\%, \mathrm{O}_{2}=4{,}1\% e \mathrm{N}_{2}=75{,}7\% para combustão de metano com ar de composição 40\%\,\mathrm{O}_{2}/60\%\,\mathrm{N}_{2}.
Em palavras amigáveis: os números não fecham os balanços molares. Algo no relatório ou na medição está errado (por exemplo: erro na titulação Orsat, erro em descontar a umidade, erro de leitura, ou composição do comburente diferente da informada).

Resposta

Não — a análise reportada não pode estar correta para combustão de \mathrm{CH}_{4} com o comburente 40\%\\ \mathrm{O}_{2}/60\%\\ \mathrm{N}_{2}; os percentuais de \mathrm{CO}_{2}, \mathrm{O}_{2} e \mathrm{N}_{2} são inconsistentes entre si pelos balanços estequiométricos.

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